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Aparição II - Parte final

Nunca tinha ido ao cais do porto na época do estio, o sol forte inibia a visão, ao olhar para o chão via-se entre os paralelepípedos a grama seca. Era meio dia, o lugar estava deserto. Olhou para o rio com nível bem mais baixo, dava para ver a marca anterior na mureta construída para barrá-lo. O mesmo navio ancorado há muitos anos continuava quase imóvel em estado de deterioração. Fez a incursão de sempre adivinhando que não encontraria qualquer ser vivo ou morto. Estava muito quente, seus neurônios pareciam fritar, pensava em todas as possibilidades, sentia o ar denso. Era como uma vibração que se expandia para todos os lados e para cima, como uma onda de calor. Foi até a porta do antigo bar e ao abrir a porta levou um grande susto ao ver Vicente sentado numa cadeira do velho cenário. Perdeu a noção das horas assim que a porta fechou atrás dela. A luminosidade era a mesma da noite em que entrara ali pela primeira vez. Os amigos de Vicente foram aparecendo de lugares que não conseguia ver, como se as paredes fossem as cortinas escuras de um palco. Sentavam-se em grupos nas mesas desocupadas e conversavam naturalmente. Ella e Vicente ficaram a sós. Ele falou que não queria assustá-la, mas não viu outra forma de levá-la mais uma vez ao porto. Esse lugar parece desabitado para quem não consegue ver a realidade. Nós somos muitos a ocupar essa área que não está abandonada ou inativa, nunca esteve. Poucos conseguem ver as várias manifestações da existência e você foi escolhida. Não se apavore e nem pense que sou louco. Nossa aparência é semelhante a de alguns jovens da sua idade, mas pode ser outra, num tempo passado ou futuro. Ella não estava com medo e sim com um pavor mortal, estava gelada, paralisada outra vez e com uma única pergunta a latejar na sua cabeça: O que ele queria? Se conseguisse falar, essa seria a pergunta derradeira, porque não acreditava que permaneceria viva ou lúcida. Depois de observá-la por minutos eternos disse que tinha falado o que queria e não iria mais importuná-la. Podia ir. Um dia saberia o que esperava dela. Ella saiu do estranho bar em estado catatônico. A claridade era intensa, esbranquiçada. Sentia sede, olhou para o relógio: meio dia. Por que não tinha ido para casa? A memória fragmentada não lhe dava pistas. Alguma coisa tinha acontecido, mas não queria lembrar. Foi para casa, aquele fora o último dia de aula e sabia que passara nas provas, graças a ajuda de Victor.

Viu o resultado final no dia em que inscreveu-se para o vestibular. O amigo passou para o curso de medicina e Ella não passou para psicologia. No ano seguinte voltou aos estudos para o vestibular sozinha. Era como se estivesse esquecido da aparição do corredor, não lia mais as histórias de Maupassant, mas começou a se interessar por parapsicologia.

Numa noite de inverno ao passar pela área portuária, ficou fascinada com toda a movimentação existente no lugar, mesmo com a cerração baixa que deixava o chão escorregadio, transeuntes passavam de um lado para o outro, entrando e saindo dos armazéns com as fachadas pintadas. Tudo estava mais iluminado, havia lojas, bares lotados tocando música que parecia da década de 40, com músicos usando chapéu e terno de riscado. Os barcos ancorados eram novos, inclusive o navio, estava restaurado. Para Ella tudo se passava atrás de uma espécie de cortina transparente. Senti-se seduzida por aquela imagem. Ao encaminhar-se para o rio viu Vicente estendendo a mão, convidando-a para embarcar no navio. Começava a lembrar, agora sabia o que ele queria.

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